?Trabalhadores fantasmas? (ghost workers) é como a antropóloga Mary L. Gray e o cientista social Siddharth Suri denominaram a vasta força de trabalho humana que executa microtarefas nas plataformas digitais, desde a moderação de conteúdo até a rotulação de dados para treinar os algoritmos de inteligência artificial (IA). Inserida na chamada ?gig economy? ou ?economia de plataforma?, essa modalidade de trabalho tem se expandido e, desde 2015, passou a ser acompanhada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Na última década, as plataformas de trabalho digital quintuplicaram se constituindo como uma parte vital da vida contemporânea ao criar oportunidades para trabalhadores, empresas e sociedade, e desencadear inovação em larga escala.
No entanto, simultaneamente, representam sérias ameaças ao trabalho decente e à concorrência leal. Essas ponderações constam do relatório World Employment and Social Outlook da OIT (2021), que enfatiza a necessidade de diálogo político internacional e cooperação regulatória para garantir trabalho digno e fomentar negócios sustentáveis.
Estudo do Departamento de Pesquisa da OIT identificou semelhanças e diferenças entre os trabalhadores das plataformas de microtask do Norte global e do Sul global (Digital labour platforms and the future of work - ILO); entre as semelhanças figura a classificação dos trabalhadores como autônomos (sem proteção de leis trabalhistas e previdenciárias). Cada plataforma tem os próprios ?termos de serviço?, ao qual os trabalhadores dão aceite, contendo questões relativas à remuneração (valores e termos de pagamento), à avaliação do trabalho e aos recursos disponíveis quando ?as coisas dão errado?. Entre as principais motivações, duas destacam-se: complementar o pagamento de outros empregos (32%) e preferência por trabalhar em casa (22%). Apesar de realizar um trabalho valioso para empresas altamente bem-sucedidas, a remuneração costuma ser inferior ao salário mínimo.
A invisibilidade e a atomização do trabalho nas ?fábricas digitais? é fortemente criticada, particularmente pela baixa remuneração (na média, 2 dólares por hora) e pelas condições precárias de trabalho. Luke Munn, pesquisador de comunicação da Nova Zelândia, no livro Automation is a Myth (2022), alerta para o lado ficcional do atributo ?artificial" associado à inteligência artificial, na medida em que esses sistemas não prescindem do trabalhador humano, mas, perversamente, ?removem? o caráter humano do trabalho. Por sua vez, Moritz Altenried, no livro The Digital Factory: the human labor of automation (2022), denominou esse processo de trabalho de ?taylorismo digital?, caracterizado por inéditos modelos de padronização, decomposição, quantificação e vigilância. Para Altenried as tecnologias digitais - baseadas em sensores, dispositivos em rede e arquiteturas de software integradas - promovem o renascimento radicalizado de elementos clássicos do taylorismo. Rafael Grohmann, fundador do laboratório de pesquisa "digi labour", contudo, alerta para o equívoco de considerar a precarização do trabalho como um fenômeno novo no Sul global, região historicamente com predominância da economia informal (no sudeste asiático, África e América Latina, a informalidade representa mais de 50% do trabalho).
Recentemente, a MIT Technology Review publicou uma série de artigos sobre a ideia de que a inteligência artificial está gerando uma nova ordem mundial colonial. Em How the AI industry profits from catastrophe, Karen Hao e Andrea Paola Hernández descrevem em como a crise econômica da Venezuela transformou, em cinco anos, o país na principal fonte desse tipo de trabalho a partir da experiência, na plataforma digital Appen, da venezuelana Oskarina Fuentes Anaya. Com os resultados positivos da Venezuela, essas plataformas expandiram sua atuação para outros países do Sul global em busca de mão de obra barata (processo semelhante a expansão da indústria dos países desenvolvidos no século XX ou, pela nova terminologia, Norte global).
A Amazon Mechanical Turk (AMT) é a maior dessas plataformas. De acordo com a Amazon, a AMT tem 75% de ?turkers? americanos, 16% indianos e 9% de outros países, com um total de 500.000 trabalhadores registrados (dados de 2019). Lançada em 2005 pela AWS, subsidiária da Amazon, por mais de uma década a AMT dominou a oferta de mão de obra barata disposta à um trabalho fragmentado e de baixa remuneração; atuando como uma plataforma generalista, a qualidade de seus resultados é duvidosa. A AMT, contudo, tem sido crucial no desenvolvimento e implementação de sistemas de inteligência artificial: são esses trabalhadores que rotulam, por exemplo, grandes conjuntos de dados de treinamento de algoritmos nas técnicas de aprendizado de máquina e, exatamente por não primar pela qualidade, tendem à produzir resultados enviesados.
A partir de 2010, emerge uma nova geração de plataformas de crowdworking com resultados mais assertivos. A indústria automobilísitica, por exemplo, a partir de 2017 obteve um melhor desempenho no treinamento dos algoritmos de IA dos carros autônomos, em alguns casos atingindo precisão de 99% (previsão de eventos futuros com 99% de taxa de acurácia). Entre as plataformas especializadas destaca-se a Scale AI, fundada em 2016 por Alexandr Wang, na época um estudante de 19 anos do MIT, avaliada em US$7,3 bilhões, tendo entre seus clientes a Toyota, a Lyft e o OpenAI; em fevereiro último, a Scale AI foi selecionada pelo Departamento de Defesa dos EUA em um contrato de US$249 milhões e, durante a pandemia da Covid-19 tornou-se a preferida das startups. Alguns de seus concorrentes são a Appen, preferida das gigantes de tecnologia como Google, YouTube e Facebook, a Hive Micro, preferida entre as empresas menos rigorosas em qualidade do serviço, a Spare5, e a Mighty AI, adquirida pela Uber em 2019.
No Brasil, cresce o número de trabalhadores nas plataformas digitais em busca de renda extra ou como principal fonte de receita. Bruno Moreschi, Gabriel Pereira e Fabio G. Cozman investigaram o perfil e a motivação de 149 turkers brasileiros (denominação dos trabalhadores da Amazon Mechanical Turk), constatando que a maioria deles é branca (64%) e masculina (66,4%), com idade média de 29 anos, trabalha na plataforma uma média de 17 horas por semana, 57% têm algum tipo de trabalho fora da plataforma - 28,9% afirmam ter contrato formal e 23,5% se identificam como autônomos-, e 52,3% trabalham na plataforma há menos de dois meses. Além disso, 66,1% não têm emprego formal há mais de um ano, destes 31% são completamente ou parcialmente dependentes do AMT para se manter financeiramente.
Do total dos turkers brasileiros entrevistados, 44% trabalha para outro serviço de microwork e/ou serviços de crowdwork, indicando que a plataforma da Amazon é apenas uma de muitas outras plataformas possíveis de trabalho digital utilizadas pelos brasileiros, sendo as mais citadas Clickworker e Appen. Quanto a ausência de leis regulatórias (além dos ?Termos de Serviço da Amazon?), 54,4% dos turkers brasileiros consideram justa, inclusive o fato de ser desfavorável aos brasileiros ("Trabalhadores brasileiros no Amazon Mechanical Turk: sonhos e realidades de ?trabalhadores fantasmas?, 2020).
Mudanças tecnológicas e culturais estão transformando o trabalho, demandando repensar os modelos de proteção do trabalhador originados na economia industrial. As ?fábricas digitais?, em geral associadas à Indústria 4.0 - convergência de tecnologias, máquinas com sistemas inteligentes -, estão em expansão fora do contexto tradicional de fábrica. É preciso romper com a invisibilidade dos ?trabalhadores fantasmas?.
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*Dora Kaufman é professora do TIDD PUC - SP, pós-doutora COPPE-UFRJ e TIDD PUC-SP, doutora ECA-USP com período na Université Paris ? Sorbonne IV. Autora dos livros "A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?" e "Desmistificando a inteligência artificial".